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OCUPAR E REEXISTIR

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Vivemos em bolhas. A expressão, hoje, traduz pela imagem de segregação aquilo que não é apenas físico, é também ideológico, e como tal atua nas mais profundas esferas comportamentais e do pensamento. Passamos a nos organizar a partir de comunidades empáticas às nossas próprias crenças, mesmo que incoerentes e equivocadas. E, sabe-se, tudo fora da bolha assume menor e inferior qualidade. Aos mais leves, aquilo não dentro pode ser ignorado; aos mais agressivos, tem-se por inimigo a ser combatido, custe o que custar. Verdade e certo se limitam aos valores de quem argumenta, enquanto flutuam ao redor de sua esfera ilusória uma infinitude de outras coisas. E independente de seus propósitos, sentidos e explicações, por não abrigarem as bolhas, obviamente não poderão estar corretas.

 

Aos poucos, esse processo narcísico, levou o Outro a existir como o alguém fora da bolha. Um ser desprovido de sentido. Ocorre a bolha, seja qual for, ser edificada por especificidades tão arraigadas em seus próprios contornos e limites que ninguém ocupa uma única. São necessárias muitas. São intermináveis. Ao tempo em que, inevitavelmente, se pertence a uma a partir de um determinado assunto e se é o alguém expulso em outro pelos menos companheiros da primeira. As bolhas se sobrepõem em um confuso labirinto, onde a única certeza é sermos muitos mais Outros e minimamente os aceitos.

 

Reconhecer ao Outro não como diferente, então, pode ser a construção de uma nova percepção sobre como as bolha em que se está podem ser permeadas por algo mais plural do que só as próprias certezas. Ao enfrentar o dualismo deste momento, o dentro e fora, o coletivo e o estranho, coloca-se em xeque outras tantas oposições estruturantes: ‘poesia pura e fala comum, mito e ilusão social, dádiva e troca equitativa, Real e Simbólico, semiótico e simbólico, liberdade e má-fé, teoria e ideologia, diferença e determinação, esquizoide e paranoide, evento e ontologia’. Segundo Terry Eagleton, essas separações em polos específicos seriam muletas do cotidiano.

 

Para o crítico literário e filósofo britânico, o equívoco nessa compreensão está na condição de nada ser possível de abandono, fazendo das dualidades a premissa inexorável pela qual manifesta-se o Outro. Diante a Cisão da Sensibilidade, erra-se ao ter no Outro o diferente daqueles emocionalmente próximos, pois a espontaneidade de nossa simpatia não se restringiria ao círculo imediato. O interesse pelo distante, explica, dá-se por mecanismos abstratos da razão. Então os afetos, sobretudo, ocorrem especialmente a partir daquilo que aprendemos no trato exatamente com o estranho.

 

As bolhas provocam uma espécie de ansiedade sobre o Outro, sobre sua suposta diferença, impondo, até mesmo antes dos argumentos, o corpo como representação primeira julgada. No entanto, mesmo não estando presente plenamente no indivíduo que o observa, o corpo do Outro existe no um pré-reflexivamente, como um existir em si, resume Terry. Portanto, por não há maneiras simples de desaparecerem as bolhas, outra solução é furá-la, de modo a provocar invasões específicas. Como se o Outro fosse a possibilidades de ares novos. Vendavais, ventos ou brisas? Depende.  Quais ares estamos dispostos a deixar entrar? Responder requer ter o Outro como quem expõe o próprio às dimensões diferentes de si mesmo e do real, encontro nele um valor inestimável. O Outro, então, não mais como o estranho e diferente, e sim como utopia.  

 

Em resposta a um dos ciclos de seminários organizados por Adauto Novaes, David Lapoujade redefine o conceito de Utopia a partir de suas três noções históricas: espaço, tempo e crença. Investigando-as sob a ótica da pós-modernidade, o intelectual identifica o espaço contemporâneo como ambiência submetida ao controle generalizado, tanto os físico e mental, quanto o ciberespaço. Também por essa experiência espacial, o indivíduo passou a entender não existir nada mais fora do espaço em que se reconhece, lugar onde compreende ser capaz de, a partir de somente por sua percepção simplificada e específica, conhecer, ver e ouvir tudo. A sensação de que ali, no interior de sua bolha, conseguir controlar a informação e os acontecimentos é o que lhe justifica o isolamento. Exclusão, na verdade, e que não percebe é antes dele mesmo e não do Outro.

 

Sobre o tempo, Lapoujade diagnostica uma ucronia, ficção ao próprio tempo: ao homem de ação, como denomina nossa condição exacerbada pelo produzir, cabe viver em um presente eterno. Esse tempo sem duração é impossível de ser superado; a ele pertencem restritamente aquilo e aquele que provocar algum sentido de deslocamento ativo sobre o presente, substituindo a ação real por outra sugerida em fingido deslocamento pela história. Uma falsa sensação de, no interior da bolha, se estar fundamentalmente mais integrado ao mundo.

 

Por fim, conclui, o dilema se funda no paradoxo dualista entre o existir como quem não crê mais o bastante - por isso lamenta-se, e o ainda não crer – então, espera. Tais extremos impõem ao individuo uma não-ação. A crise da ação é, por conseguinte, uma crise da crença. E sendo esta o motor inicial da utopia, é preciso responder e reagir a partir do enfrentamento do presente, porém não mais só a partir de si.
O Outro assume a dimensão utópica possível, espécie de antiutopia,
pelo qual se pode conceber outras crenças transformadas e desdobradas fora das bolhas.

 

Por isso convidamos Outros para invadirem os espaços abertos em cada um, após torná-los disponíveis, acessíveis, próximos, sensíveis. A arte serve a isso. Não para afirmar, mas para tornar porosos os corpos e os muros, as bolhas e as fronteiras, os espaços e tempos de cada um. Durante o OUTROS Festival, sutilmente, de algumas maneiras: oferecendo nossas bolhas sociais às invasões e ocupações de respirações nem sempre percebidas no cotidiano; perguntando aos artistas quais Outros, afetivamente, gostaria de trazer para dentro do universo por nós construído. E, em ambos os gestos, sem atribuir qualquer controle e interferência aos desejos. Aceitando o Outro em nós como reflexo que aproxima ao invés de distanciar, tal como propõe Terry.

 

OUTROS Festival pode ser uma bolha mais. Isso talvez seja de fato inevitável, se Lapoujade estiver mais certo do que errado. Só que, diferente de tantas por aí, propositalmente frágil. E frágil
especialmente por ter no Outro a dimensão de uma utopia sobre o agora, o presente, por quem se poderá erguer concepções novas sobre o viver e o sentir. E, quem sabe, mudar algo maior do que conseguimos nesse instante perceber.

 

Bom festival a todes.

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